Doutor Ary Vital e senhor Jacinto José de Lima, “O
cravo das moças já foi alecrim das meninas”. |
O "cravo das moças" com suas malhadeiras |
Era quase meio-dia, sol à
pino, quando fui até portão da delegacia e vi aquele senhor, já com as marcas
do tempo e da sabedoria estampadas no rosto, encostar seu carrinho próximo à
calçada e depois se sentar na batente que cerca o jambeiro.
- Os pés doem.
Ele falou ao tempo e eu
ouvi, sem querer ouvi. Ele nem percebeu que estava encostado ali próximo. Fui
até ele.
- Tudo bem senhor, como vai?
- Tudo bem. Hoje o dia está
com o clima quente. Estou descansando um pouquinho aqui na sombra do jambeiro.
Ele se abanava, mas não
perdia o sorriso.
- Fique à vontade.
E percebi que naquele
carrinho de mão havia uma maleta e outros objetos. Não me contive, como uma
criança enxerida perguntei-lhe:
- O senhor está de mudança?
Vai viajar?
Ele me respondeu:
- Não, não. Ainda não, ainda
tenho cem peças de malhadeiras para vender.
- Então o senhor é vendedor
ambulante e vende o que?
E assim começou um diálogo
ali debaixo do jambeiro, sob o céu de Rurópolis, onde duas pessoas de tempos
diferentes tiveram suas histórias cruzadas.
- Vendo malhadeiras e
tarrafas.
- E o senhor vende bastante?
- Sim, quem não gosta de uma
pescaria?
E, quando ele me perguntou
isso, entrei naquele meu momento que todos já conhecem chamado de “um instante
que não para” e pensei comigo: “Nem sei o que dizer para este senhor, mas eu e
pescaria não combinamos, de forma alguma, pois, logo eu que sou imperativo,
inquieto e ansioso, não consigo ficar calado, em silêncio esperando o bel
prazer de um peixe. As duas vezes que me convidaram para uma pescaria estraguei
as duas, acho que no dia em eu morrer, no meu túmulo vou conseguir ficar em
silêncio. Que perdoem minha ignorância os amantes da pesca, mas, cada um na sua
arte”. Então lhe sorri e disse:
- Pescaria, pescaria,
pescariiiiiiiiiiiaaa....não. Mas, gosto de um açude, de um pesque e pague, de
um lugar desses que o peixe não demore muito para dar o ar de sua graça.
Ele sorriu.
- Pois bem, aqui nós temos
pacuzeira, piabeira e piauzeira.
Neste momento, quando ele
disparou este bando de nomes, um atrás do outro, até não catalogados no meu
dicionário, eu quase tenho uma síncope.
Antes de continuarmos, para
tudo: Síncope ou desmaio, é a perda súbita e transitória da consciência e
consequentemente da postura, devido à isquemia cerebral transitória
generalizada (redução na irrigação de sangue para o cérebro). Existe sempre
recuperação espontânea da consciência na síncope.
- Meu senhor, por favor, por
obséquio, o que é uma pacuzeira?
Ele me respondeu:
- Doutor, é um tipo de
malhadeira que serve para pescar pacú, já a piabeira para pescar piaba, a
Piauzeira para pescar piaú e ainda há a flecheira para pegar o peixe, lembrando
de que o saqueiro tem que ir atrás acompanhando o arqueiro.
Para tudo! Olha a síncope.
Sou marinheiro de primeira viagem, tudo tem que ser explicadinho nos mínimos
detalhes, tive que pesquisar: Pacu é o nome geral dado a várias espécies de
peixes caracídeos da subfamília Serrasalminae, que também inclui as piranhas.
São típicos do pantanal sul-matogrossense, dos rios amazônicos e bacia do
Prata, e originários dos rios Paraná, Paraguai e Uruguai. Alimenta-se de
frutos, caranguejos e de detritos orgânicos encontrados na água. Atinge 25 kg
de peso, comum até 8 kg. São praticadas duas formas diferentes de pesca - na
vara de bambu, fisgada com frutos (tucum, laranjinha ou jenipapo) ou pesca
apoitada com isca de caranguejo. Piaba ou Piava procedem do termo tupi pi'awa,
que significa "pele manchada". É um peixe de cor brilhante, prateada.
A boca é pequena, porém possui dentes fortes e capazes de arrebentar anzóis
fracos. Costuma nadar muito em busca de comida. Suas preferências são por
vegetais, larvas de insetos, além de pequenos peixes. Piau: Nome dado às piabas
maiores. Flecheira: é uma palavra derivada de flecheiro, ou seja, aquele
caçador armado de arco e flecha; arqueiro (variação – frecheiro). Quanto à
utilização do saqueiro fica a critério de cada um, não vou entrar no mérito da
causa.
Voltando ao diálogo:
- Entendeu?
Ele me perguntou.
Eu com uma postura e ar
“estrogonófico” expressando sabedoria pura lhe respondi, balançando a cabeça:
- Tecnicamente,
tecnicamente.
E lembrei-me das
maravilhosas viagens pelos campos do Marajó de outrora, onde, certa vez,
conversando com uma linda cabocla de nome Tuany, ela in loco me explicou
juntamente com outros ribeirinhos como pegar um siri.
- Ei, garoto da cidade,
venha cá. Vem pegar Siri com a gente.
Como uma criança curiosa, eu
fui. Perguntei:
- E como se pega um Siri?
Ela explicou:
- Se pega o siri com um
pedaço de carne amarrado na ponta de uma linha, o crustáceo é içado para a
superfície e apanhado com o uso do landuá.
- Landuááááá?
Perguntei.
- Sim. Esta aí do teu lado, essa pequena rede presa
a uma armação de madeira triangular. O landuá, geralmente, é utilizado para
recolher siris apanhados em pescarias feitas em margens de rios ou praias
afastadas. Entendeu?
Eu com os óculos na ponta do
nariz, com uma postura e ar “estrogonófico” expressando sabedoria profunda lhe
respondi, balançando a cabeça:
- Tecnicamente,
tecnicamente.
E, não é que deu certo.
Voltando o diálogo debaixo
do jambeiro
- Meu amigo, já vou me
embora. Está quase na hora do almoço.
- Verdade. Foi muito
interessante nossa conversa aprendi muito, nada como a sabedoria popular. Qual
é seu nome?
- Jacinto José de Lima, “O
cravo das moças já foi alecrim das meninas”.
Foi assim que ele se
apresentou. Achei fantástico!
- Quer saber mais? Então,
tenho 76 anos, sou goiano da cidade de Padre João da Boa-Vista, cheguei no Pará
em 1977, estou aqui em Rurópolis há 40 anos, mas brevemente estarei indo para o
Amazonas.
- Então está certo senhor
Jacinto.
Falei e ele repetiu:
- Jacinto José de Lima, “O
cravo das moças já foi alecrim das meninas”.
Confesso que me diverti e
aprendi muito escrevendo esta crônica. E com o calor que estava fazendo,
automaticamente, lembrei-me de um amigo de longas jornadas, residente em Belém,
minha terra natal, que do nada, publicamente, no facebook, me chama para tomar
uma cerveja Cu de Foca. Eu quase tive
uma síncope. Para mim ele estava me sacaneando, quase leva uma bruta
esculhambação, pois nunca tinha ouvido tal expressão. Sabia da existência da
cerveja escura batizada de Caracu, mas esta outra até ontem desconhecia. Logo
eu que não bebo cerveja e muito menos Cu de foca. Contudo, me acalmei, pois para quem como eu
que já confundiu os termos caititu e catiroba, resolvi pesquisar e não é que
essa expressão existe até cômica e um tanto quanto deselegante, porém, é muito
comum nas rodas de bar para expressar sinônimo de geladíssima ou estupidamente
gelada. Mas, antes para descobrir isso, eu penei, tive que recorrer às cartas,
aos universitários, aos colegas, aos informantes e até fiz uma ligação anônima,
disfarçando a voz, para um bar perguntando “tem uma cerveja cu de foca aí?”.
E podem crer, assim me
responderam:
- Tem, pode vir, já estão
estupidamente geladas.
É isso. Antes de finalizar
quero agradecer a todos os leitores das crônicas semanais. Tenho encontrado
muitas pessoas que me dizem que as crônicas tem as levado do riso à emoção,
auxiliado de alguma forma nas suas vidas (não sei como ainda, mas vamos
descobrir juntos, por enquanto minha vaidade leonina agradece), sem contar, com
as inúmeras mensagens recebidas por Whatsapp, pelo facebook e e-mail. Fico
feliz por isso, pois, junto com vocês também vou do riso à emoção e aos poucos,
a gente vai melhorando, moldando, descobrindo e se redescobrindo. Eu passo
conhecer um pouco de vocês e vocês de mim. É nosso elo. Fico feliz, porque tudo começou como uma
brincadeira, como um gentil convite de Helder Marinho para o blog sem polêmica
e jamais pensei que tomaria tal proporção quanto ao entretenimento.
Agora sim, finalizando:
Entre o real e o imaginário,
entre a verdade e a fantasia aqui contada, o que nem eu já sei mais, encerro a
crônica da semana. Um beijo a todos fique com Deus e até semana que vem. Ariosnaldo da Silva Vital Filho.
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