sexta-feira, 3 de março de 2017

CRÔNICA DA SEMANA: A PORTEIRA

O autor, com a "Dona Nega"
 Era Sábado, já no período da tarde, caminhando numa vicinal de Rurópolis, quando de longe ouvi uma voz:
- Ei, o que vocês estão fazendo aí na minha porteira? Posso saber?
E de propósito, eu me escoro mais ainda e respondo:
- Nada demais senhora, eu estava caminhando e parei para admirar a paisagem e ver como eu chego até o alto daquela pedra, mas, desde já lhe digo sua porteira ficou muito bonita de preto. Gostei da cor, forte, viva, imponente.
E aquela mulher com a mão na cintura muito desconfiada, em tons elevados disse:
- Será só isso mesmo? Eu não estou gostando dessa história.
Eu:
- É somente isso mesmo, mas se aproxime, não há motivos para nos falarmos quase gritando.
"Dona Nega" e sua horta

E  lá de cima ela desceu e veio já falando:
- Eu não estou gostando dessa história não. Esse negócio de estar próximo a minha porteira não tá certo, vou ter que chamar a polícia.
E eu:
- Prazer, em conhecê-la, sou delegado.
E ela ainda desconfiada disse:
- Doutor Ary? Será?
Eu:
- Sou eu!
E ela:
- Não o conhecia. Doutor, veja só, sujou seu braço de tinta preta.
E eu:

- Deve ter sido na porteira, mas depois sai, a Senhora não é dona Nega?
Ela ainda meio desconfiada:
- Sou eu, por quê?
Eu:
- Vicentinho me falou, eu estava ali na casa dele. Eita, mulher brava e desconfiada. Deixa eu lhe dizer, há dias que eu tiro para estar comigo mesmo, estar na minha companhia, tirar os sapatos, sentir a terra, o cheiro de mato, respirar fundo, andar pelos travessões, pensar e me esvaziar dos problemas absorvidos durante da semana. Hoje, andando por essas bandas, resolvi varar por aqui e vi aquela pedra e quis subir.
Ela:

- Entra então, deixa eu abrir a porteira de vez e vumbora tomar um café.
E eu fui, e vi que aquela “marra” toda era somente disfarce. Dona Nega é uma pessoa doce, uma agricultora batalhadora. Ao caminhar por seu sítio, aquela agricultora me contou um pouco sobre sua vida e sua lida na agricultura, ela me mostrou suas hortaliças, sementes e parte de sua história. Quando vi já estávamos na cozinha, onde me serviu uma fruta do conde, popularmente conhecida como ata. Conversa vai e conversa vem, de repente, de lá de dentro me apontou a dita pedra que eu tanto almejava a subir e me fez um desafio.

Ela:
- Ei delegado, te faço um desafio, tens mesmo coragem de escalar a pedra?  Te desafio a subir na pedra e sentar lá do meu lado.
Eu, olhando aquela altura, já meio desconfiado disse:
- Estamos aqui para isso.
E não pensei duas vezes, mesmo o céu meio fechado e a chuva se anunciando, tirei o calçado e segui os passos daquela senhora, entrei no mato e escalei. Claro que não foi na mesma velocidade de Dona Nega, mas consegui chegar ao topo. E do alto pude ver tanta coisa bonita, esvaziar a mente e corpo de uma semana agitada, e o que é melhor venci o desafio.

No caminho, em certo momento, fiquei muito preocupado, pois não tenho mais 20 anos para topar esses desafios de supetão, mas disso tudo tirei outra lição: o coração não envelhece, aliás, envelhecer é preciso, mas sem perder a juventude.
Dado momento, ela me deixou sozinho e ficou me observando lá de baixo, as minhas únicas companhias eram o vento, meus pensamentos, minhas reflexões, meus agradecimentos a Deus pelos caminhos que a minha vida tomou e, por tantas vezes, que me senti perdido, sem destino, mas que na verdade, sem que eu notasse, DEUS tomava conta escrevendo a sua melhor crônica.
Quantas porteiras a gente não encontra na vida? Quantas são abertas? Quantas são fechadas? Quantas brigas se iniciam por causa de uma porteira e quantas ali terminam? Quantas pedras a gente já encontrou no meio do caminho? E dessas, quantas nos escalamos e vimos do topo que fomos mais fortes do que o obstáculo posto?

E nesta trajetória quantas pessoas de estenderam a mão e de impulsionaram para seguires adiante? É... Certamente, foram tantas, mas estamos aqui, não disse que DEUS toma conta e sempre nos guarda a melhor história. 
Perdido nas horas, até ser acordado não pela chuva que resolveu dar uma trégua, mas pelo grandioso fim de tarde. Tive que descer rapidamente dali. E com um sorriso no rosto a Senhora Angélica Maria de Paula Silva, popular “Dona Nega” se despediu de mim com um volte sempre dentro de um abraço apertado, dado ali mesmo, na porteira, onde tudo começou.

Entre o real e o imaginário, entre a verdade e a fantasia aqui contada, numa porteira ou no alto de uma pedra gigante, o que eu já nem sei mais, encerro a crônica do dia. Um beijo à todos, fiquem com Deus. Ary Vital Filho.

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