Joevan de Mattos Caetano (Joe) e sua tia Ana Matos |
Senhora Ana Matos |
Tia Ana Matos! Me lembro de
você visitando a casa de meus pais quando eu era criança. Recordo-me que teus
filhos Beatriz (Bia Matos) e o Raulinho brincavam comigo com os jabutis no
quintal da nossa casa em Rurópolis no interior do Pará.
Estamos aqui conversando em
Mambucada região de Angra dos Reis fazendo um recuo histórico no tempo do
tempo. O mundo dá voltas para alguns, né?
Conte-nos um pouco sobre os
anos que antecederam a decisão de migrar para o norte do Brasil! Quero entender
este quebra cabeça.
Joevan! Em 1971, eu e a tua
mãe (Maria Evangelista) fizemos concurso para professora em São João de Miriti
no Rio de Janeiro. Fomos aprovados com facilidade e começamos a lecionar.
Trabalhávamos meio turno e recebíamos um salário relativamente estável. Eu adestrada
na roça e depois em Campos (cidade calma e segura naquela época), senti o
impacto da cidade grande e comecei a sofrer de SÍNDROME DO PÂNICO. Não havia
tratamento adequado para isto naquela ocasião e eu fui pirando. Eu chutei o
balde, pedi demissão do emprego público e voltei para Campos com aquele assombro
psicológico que continuou.
E a minha mãe?
Joe! A tua mãe e a tia Lídia
tinham unção de beatas super espirituosas. Tua mãe ficou possessa pela vocação
e pelo chamado divino para fazer Missões e também abandonou aquele emprego
estável para estudar no IBER (centro teológico batista para ninfetas com e sem
santidade).
Ninfetas absurdamente
fogosas né? Aham..Certamente
Hum!!
Tia! Me lembro da minha mãe
contando que meu avô paterno (Oséias Mattos) não gostava de negros, pois era
racista. Minha mãe dizia que quando ela foi estudar no IBER, enviaram ela para
fazer estágio na Favela do Jacarezinho e lá 99,999999% das pessoas eram NEGRAS
cor de carvão. Minha mãe dizia que era convidada para almoçar na casa dos
irmãos da Igreja (negros) e quando colocava a comida sobre a mesa, o estômago
travava tudo. A corneta do meu avô apitava na consciência e ela não conseguia
comer sequer 10 gramas de comida. Se comesse vomitava, pois era comida
cozinhada por negros. Minha mãe disse que aquele racismo foi sendo curado pela
convivência direta com os afros favelados. Foi um longo processo de
desintoxicação herdado do meu avô racista descendentes de portugueses donos de
escravos.
Senhora Bia Matos |
Sim Joe...lembro disto. Tua
mãe casou com um negro em 1977.
Teu avô pirou. Nem foi na
cerimônia de casamento na Igreja Batista Monte Tabor no Rio.
Você poderia nos contar como
ocorreu o processo de migração do Rio de Janeiro (Sudeste) para aquele fim do
mundo que era o norte do Brasil nos anos 80?
Eu estava desempregada em
Campos e tua mãe havia migrado para Rurópolis (Pará) em 1984 e trabalhava como
professora no Colégio Estadual da cidade. Ela se prontificou a me ajudar lá
arrumando emprego.
Em 1987 recebi uma parte da
herança da minha avó e fiquei na dúvida se comprava uma boa casa em Campos ou
se migrava para o Pará. Deus ou Satanás me tentaram para ir para o Pará. A
viagem de ônibus e navio fazendo trocentas conexões durou 10 dias. Eu, meu
marido (falecido em 2016), meus dois filhos pequenos sofremos muito viajando.
Erramos o caminho e ferrou tudo. Conseguimos chegar em Belém e tivemos que
ficar 3 dias esperando um navio para Santarém. Conhecemos Belém naquela
peregrinação.
A viagem de navio durou 3 dias e foi uma Aventura. Num andar do navio
havia cultos petencostais e no outro andar havia festas de carnaval. Fomos para
o culto e meu filho de 7 anos se converteu à Jesus. Meu marido ia para as
festas de Carnaval e voltava porre e todo cheio de marca de batom. A mulherada
lá atacava homens solteiros e casados sem pudor e temor. Durante aquela
travessia, meu marido lindo e maravilhoso foi atacado por mulheres paraenses
ávidas por muito sexo em alto mar. Ele não resistiu a sensualidade conjunta
daquelas piranhas e cedeu. Quando o navio aportou em Santarém, meu marido
seguiu a vida dele (sem dinheiro) e eu viajei com meus filhos para Rurópolis.
Rolou divórcio naquele
navio?
Sim Joe...levei muitos
chifres naqueles 3 dias.
E teu ex marido?
Ah! Mal ele desembarcou
solteiro e sem dinheiro em Santarém, ele já arrumou uma amante com dinheiro e
ela sustentou ele durante alguns anos. Eu viajei para Rurópolis sozinha com os
meus dois filhos pequenos
E tua vida em Rurópolis?
Pegamos um ônibus de Santarém
até Rurópolis e enfrentamos estrada de chão.
Senhora Carina Salles |
Quando desci do bus na Rodoviária,
LEVEI UM SUSTO. Me dei conta que eu estava num buraco e quase sem dinheiro. A
grana da herança havia sido consumida naqueles 10 dias de viagem com 4 pessoas
com voracidade de dinossauros comilões.
Tu arrumou emprego em
Rurópolis?
Trabalhei como professora de
português na escola estadual que tua mãe trabalhava. Trabalhei uns 5 meses e
não recebia. Tua mãe tirava do salário dela para eu não passei fome, mas mesmo
assim passamos necessidade. Tua mãe assumiu a direção daquela escola e
descobriu que os meus documentos não haviam sido enviados para Belém para o
registro de funcionária estadual. Tua mãe pediu para eu ficar porque ela iria
regularizar a situação, mas eu com filhos pequenos e sem receber, decidi ir
para Santarém.
Eu estava dura e tua mãe doou um salário para eu me manter
temporariamente em Santarém com duas crianças pequenas. Em Santarém aluguei um
quarto e toquei minha vida.
Lá tu foi professora?
Sim. Lecionei em escolas
particulares e afins. Fiz de tudo um pouco.
E o teu marido?
Quando brigava com a amante,
voltava para mim. Apesar de tudo, eu amava muito ele. Se Salomão tinha 1000
mulheres e todas viviam sem conflitos, porque deveria eu pirar o cabeção com
algumas concorrentes? Ele era LINDO. Quando bebia, ele se tornava UM MONSTRO
com muito mais ferocidade do que o temível Leão da Tribo de Judá, mas quando
ele estava lúcido, era um Top cavalheiro, manso e divertido de coração.
Como ocorreu a decisão de
retornar ao Sudeste no final da década de 80?
Meu filho Raulinho sofria de
problemas de saúde e o médico recomendou que ele retornasse imediatamente para
o Sudeste, pois o clima no norte era geratrix daqueles males na pele, etc. Caso
eu permanecesse lá, meu filho padeceria e morreria. Decidi voltar para Campos e
informei a gravidade da situação ao meu marido garanhão. Ele lutou com unhas e
dentes para conseguir dinheiro para 3 passagens de avião pela VASP, mas não foi
possível. Avião era somente para RICOS nos anos 80. Ele comprou 3 passagens de
Navio saindo de Santarém para Belém e lá eu peguei um ônibus de Belém para o
Rio de Janeiro. Eu viajei grávida da minha Terceira filha Carina. Quando
chegamos em Belém 3 dias depois, não havia passagem pela manha e tivemos que esperar
até a noite a saída do Bus. A viagem de bus durou 2 dias. Não foi fácil viajar
5 dias com duas crianças pequenas e uma bebê agitando-se na barriga.
Senhora Ana com a sua filha Bia Matos |
E como foi o recomeço no
Sudeste?
Acertei com o meu marido que
eu iria para Campos e meu marido conseguiu um Kitchnet da família dele para eu
morar temporariamente. A família do meu falecido esposo, me deu suporte naquele
começar de novo”.
E teus filhos Beatriz e
Raulinho quando voltaram? O que fizeram da vida?
A Bia entrou em crise quando
ficou reprovado na sétima série do antigo primeiro grau. Quis se suicidar e
tudo. Desistiu de estudar e só retornou posteriormente para concluir o Ensino
Fundamental e Ensino Médio.
Ohhhhhhhhhh my god. Os
chineses que agem assim. Piram o cabeção quando são reprovados em alguma
disputa. Desde criancinhas são adestrados a serem perfeitos. Tia! Tu sabia que
eu fiquei reprovado em matemática na quarta série e minha mãe teve uma ideia
genial? Ela me colocou na aula de violão e minha vida mudou. Saí daquela vida
de peão boia fria e a música me levou para Itaituba, Manaus, Espírito Santo,
Rio de Janeiro e em 2013 para o doutorado em Musicologia numa Universidade na
Alemanha.
Interessante, Joe!!!!
Joe! Desde os 11 anos a Bia
tinha corpão e os homens paraenses e nordestinos ficavam alucinados com libido
de gavião loucos para namorarem minha filha. Bia sempre foi linda, sensual e
super comunicativa. No sudeste, ela conviveu com advogados, juízes, professores
universitários, empresários, engenheiros, etc da elite. Bia não fez Faculdade,
mas é uma mulher culta porque acessou gente altamente escolarizada. Bia viajou
muito para várias regiões do Brasil. Em São Paulo, Bia trabalhou e ajudou
sustentar a casa. Eu doente e desempregada, só não sucumbi porque a Bia ralava
muito fazendo trocentos trabalhos alternativos para não deixar a peteca cair.
Bia estabilizou-se financeiramente quando casou-se com um homem 20 anos mais
velho do que ela que era divorciado. Ele tinha uma boa estrutura $$$$$$ e foi
uma pessoa muito importante para a estabilidade da nossa família. Sou muito
grato à ele.
Tia Ana! O Brasil é um país
marcado pela tradição oral. A tradição escrita, outrora reservada somente para
os filhos (as) dos ricos era epigonal. De alguns anos para cá que a tradição
escrita foi acessada pelos pobres. A tua filha foi e é portadora da tradição
oral. Chamar uma pessoa que não sabe ler e escrever de “burro e analfabeto” é
um ato de ESTUPIDEZ RETÓRICA daqueles que evocam a tradição escrita num país
dominado pela TRADICAO ORAL.
Senhora Carina Salles com o marido |
Quem carrega a tradição oral, é portador de muita
cultura. Se acessamos narrativas nos evangelhos atribuídas à Jesus, é porque
elas foram resgatadas da tradição oral. Jesus discursava em aramaico e a tradição
escrita registrou aqueles discursos e adaptou-os a língua grega. Lembram do
Senhor Lula? Independente de quem gosta ou nao (figura publica divide opiniões),
Lula sabe mais de política do que trocentos doutores e pós doutores em Ciências
Políticas. Lula aprendeu política na MELHOR ESCOLA DE POLÍTICA DO PLANETA:
Convivência direta com políticos profissionais e grandes empresários no mundo
todo ao longo da carreira dele. Quem chamava Lula de “analfabeto” dava tiro no
próprio pé. Salve a Bia e a super cultura fruto da tradição oral e pelo convívio
com uma pluralidade.
É isso aí, Joe!
E o Raulinho? Tomei
conhecimento que ele faleceu vítima de um câncer na cabeça. Pode esclarecer
sobre o ocorrido?
O Raulinho tinha uma doenca
desde o nascimento. Aquele tumor já veio desde a infância, mas não foi
descoberto. O Raulinho vivia com preguiça, sono, tonturas e uma sinusite braba.
Quando ele ia ao medico, faziam apenas o Raio X e receitavam remédios que nao
curavam. Quando a situação dele piorou, resolveram fazer a tumografia e o teste
acusou um TUMOR NO CÉREBRO. Era incurável. Raulinho já tinha 30 anos e aquele
tipo de câncer só se manifesta depois dos 30. Raulinho morreu com 32 anos e com
paralisia no corpo todo. Nossa comunicação nos últimos meses ocorria apenas por
movimentos dos olhos. Está sentindo dor? Fecha os olhos. Está sentindo pouca
dor? Abre os olhos. Ele entendia os comandos emitidos por mim, mas a boca não
conseguia reagir. Ele sucumbiu assim. Abrindo e fechando os olhos quando eu
falava com ele. Ele morreu em 2010. Era uma pessoa muito divertida. Todo mundo
aqui gostava dele. Estou triste!!! Saudade é a mãe arrumar o quarto para o
filho que já morreu.
E a tua filha Carina?
Carina casou-se com um rapaz
que trabalha na Usina Nuclear aqui em Angra dos Reis. Ambos estão
estabilizados. Carina nasceu fruto daquele fuca fuca meses antes do nosso
retorno ao sudeste. O marido brigava com a amante e ia para a minha casa e lá
ROLOU. Carina veio ao mundo e é a minha anja da guarda. É ela quem me dá
suporte na velhice.
Pois é tia..
Conheci a Carina em 2005 em
Teresópolis na Igreja do pastor Zilmar e agora aqui em Mambucaba.
Ela e o marido são duas
pessoas gentis. Ambos cabeça fresca…Ambos jovens sem frescuras e EMANCIPADOS.
Muito obrigado pela atenção
e pelas informações que nos ajudam a entender parte da família Matos recuando
no túnel do tempo.
Muito obrigado pelo
depoimento.
Para você, filhos e netos,
deixo esta citação do saudoso Historiador Eric Hobsbawm:
(...) “a melhor história é
escrita por aqueles perderam algo. Os vencedores pensam que a história terminou
bem porque eles estavam certos, ao passo que os perdedores perguntam por que
tudo foi diferente, e esta é uma questão muito mais relevante."
Eric Hobsbawm (livro Pessoas
Extraordinárias).
Entrevista
concedida à mim (Joevan de Mattos Caitano) em 15 de Janeiro de 2017 na casa da
minha tia Ana Matos em Mambucaba (parque perequê em Angra dos Reis).
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