sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

CRÔNICA DA SEMANA: CHUVAS, TROVOADAS E OUTRAS HISTÓRIAS

Senhor Bugio, senhora Marly e o autor
- Boa tarde Seu Zé Bugio, há muito tempo que não vinha aqui. Da última vez me lembro foi quando encontrei a professora Antônia e escrevi “Um presente de Deus”. Que por sinal estou em débito com ela, nunca mais me ligou, desde o dia de Natal quando me chamou para almoçar e eu acabei não indo. Estava trabalhando nesse dia.
Com toda sua generosidade Zé Bugio e Dona Marly me convidou a entrar e ficar a vontade em sua chácara.
- Doutor, vai chover! Se acomode mais para cá! Quer uma rede?
Olha já! Perguntando logo para um paraense quase um tupi-guarany e sem pensar duas vezes respondi:

- Claro que quero!
Esse negócio de cerimônia comigo não existe.
Zé Bugio continuou a prosa, olhando para o tempo:
- Doutor, vai chover!
E eu:
- Vai nada!
E ele ainda olhando para o tempo:
- Vai e muito! Capaz do mundo desabar.
E quando vi, minutos depois, deu uma tempestade com raios e trovões, que realmente pensei que o mundo fosse desabar.
E choveu, ventou, esfriou, tremeu, e árvores caíram de um lado e de outro fazendo um barulho aterrorizante. Raios cruzando o céu. Água para todos os lados. Faltou até energia.
E me deu um medinho e depois um medão, mas não falei nada, somente não queria que uma árvore caísse em cima de mim. Tu é doido é! Não brinco com as forças da natureza. Tô fora. Respeito a mãe natureza, a força da terra.
- Tá com frio?
Com aquela voz grave e baixa, Zé Bugio me perguntou.
- Tô.
Respondi.
- Bora tomar uma cachaça temperada?
Eu:
- Cachaça temperada?
Ele:
- Sim, para esquentar o corpo e espantar o frio. Olha, aqui nesse litro tem uma mistura de Jucá, cumaru, cajá.  É a pinga temperada.
E foi a primeira fez que tomei um gole dessa tal pinga temperada. E entrei naquele meu momento chamado de “um instante que não para” e me lembrei de um caso do ano de 2008. Lendo de um depoimento que o declarante teria dito que antes do crime a vítima se encontrava no seu bar ingerindo bebida alcoólica, e ali haviam várias pessoas, mas a vítima estava tranqüila, de boa, numa mesa separada, ingerindo cachaça com Jucá e depois saiu dali normalmente quando aconteceu o sinistro. Depois que li isso, fiquei folheando as outras páginas procurando um depoimento e nada de encontrar. Até que perguntei para o investigador:
 “Esse Jucá não foi intimado, precisamos encontrá-lo. Aqui fala que antes do crime, a vítima estava numa mesa de bar ingerindo cachaça com Jucá. Quem é esse afinal?” E o investigador com um leve sorriso no rosto riu e me explicou tudo. É... Paguei um mico e com várias pessoas testemunhando a minha ignorância. Também ri de mim e até hoje quando lembro caiu no riso. Passei minutos olhando aquela semente na garrafa e comigo pensava: “Então és tu o Jucá, te achei”.
Zé Bugio me perguntou:
- O que foi Doutor? O senhor ficou parado aí, perdido no tempo. Tá tudo bem?
Respondi:
- Está tudo claro agora. Então é esse o tal de Jucá.
Ele:
- Sim, por quê? Tá preso?
Eu:
- Deveria.
E contei a história que o fez rir até ficar vermelho. Aos poucos a vida perdoar e a me perdoar de minhas falhas, e até rir de mim. Principalmente, agora que descobri que Jucá, Cumurá e Cajá, todos fazem parte de uma gangue, a da “pinga temperada”.
- Ei Doutor bora pescar?
- Vou nada.
- Bora?
Insistia Zé Bugio.
Mas ainda estava chovendo, e as árvores caindo, estávamos isolados, sem telefone,
E ele com a maior tranqüilidade me dizia:
- Relaxa. O tempo vai melhorar e bora pescar e comer peixe.
E o tempo melhorou e eu fui.
- Olha Doutor isso é uma tilápia.
E eu:
- Bom saber, para não correr mais o risco de pagar outro mico.
E Dona Marly preparou o peixe, enquanto isso Zé Bugio trouxe para mesa mais uma iguaria:
- Coma Doutor, faz bem. É fortificante.
Eu:
- O que é isso?
Ele:
- Ovos de pata.
Eu:
- Nunca comi.
Ele:
- Coma, faz bem, pura proteína. É fortificante. É por isso que temos força para enfrentar a lida diária, subir ladeira, descer ladeira, ir para roça.
E eu comi. Não é que é bom! E o ovo de pata me deu um calor e um pique que poderia nadar naquele açude por horas. Eu estava num verdadeiro Happy Hour com Zé Bugio. E enquanto o peixe não vinha, Zé Bugio me contou vários “causos”, dentre eles que teria ensinado meu Tio Ariosvaldo Vital, conhecido por muitos como Dr. Vital, a dirigir o seu trator. 

Falou de sua história de vida quando chegou a Rurópolis. Contou sobre suas pescarias e os diversos tipos de peixe, uns com mais espinhas outro com menos, uns com escama outros sem escama.
Até que a tilápia foi posta na mesa e aí que a conversa se alongou. A chuva foi passando e a noite chegando. Hora de se despedir.
- Volte quando quiser. Se quiser pescar fique a vontade até para entrar no açude, mas não vá se assustar com o pirarucu que tenho. Certa vez convidei um colega seu para pescar e ele entrou no açude com a rede, o pirarucu encostou na perna dele e o homem saiu correndo pensando que era uma sucuri.
Procurei saber quem foi esse bravo pescador, mas o nome permaneceu em sigilo.
A chuva passou e fui embora, na mochila levei muitas histórias e numa sacola, ovos de pata.
Eu tinha dito a mim que não escreveria mais crônicas, nem contos, mas um dia um amigo escritor me alertou dizendo que elas carregam consigo a arte do elogio, da admiração, da homenagem, da celebração ao cotidiano e a eternização de um simples momento, como os escribas faziam no início do século. Admiro tantas essas pessoas por sua trajetória de vida na transamazônica. Penso que admiração silenciosa não adianta para nada, o que adianta admirar e calar? O que adianta admirar algo que alguém fez e nunca contar? 
O mundo está cheio de tragédias, estas dão mais notícias do que a celebração da vida e com isso esquecemos que elogiar uma atitude positiva, agradecer uma gentileza ou um feito, devolver um sorriso, retribuir um abraço, e o tempo vai passando e tudo aquilo que era para ser feito em vida pelo próximo, fazemos no velório. É neste dia que mais se recebem elogios, flores, visitas, congratulações, etc. Então, diante disso, prometi a mim mesmo, seguir em frente e que venham novas histórias cada uma de seu jeito e sua carga emotiva.
Assim, a José dos Santos Silva e Marly Silva deixo registrado meu muito obrigado pelo carinho e a forma que fui recebido numa tarde de chuvas e trovoadas, e pelas histórias emprestadas.
E professora Antônia, mil perdões por ter faltado o almoço de Natal, perdi o chester!

Entre o real e o imaginário, chuvas e trovoadas, entre a verdade e a fantasia aqui contada, o que eu já nem sei mais, encerro a crônica do dia. Um beijo à todos, fiquem com Deus. Ary Vital Filho.

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